quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Pablo, o pintor de Satoshi Kitamura

 
 
 
 
 
 
 
 
 
Quem é Pablo, o pintor? Inevitavelmente, os adultos pensarão em Picasso. Poderá a narrativa levar a ele? Através do contacto com o bloqueio criativo e com o sonho, possivelmente. Mas não pela biografia.
Este Pablo é um elefante cujo sonho é expor o seu trabalho e agora que tem essa oportunidade não sabe o que pintar. Este é o momento inicial da história, com a qual todas as crianças se identificam: o bloqueio criativo acontece-lhes perante a folha em branco e a liberdade de escolha, no seu dia a dia, na escola.
Como resolver o problema é a pergunta a que a leitura vai responder – eis o primeiro móbil de interesse. Pablo parte para o campo a conselho dos amigos, como tentativa de encontrar a inspiração e o tema para a sua pintura. O quadro, no seu cavalete, expõe-se ao longo do processo, nas ilustrações, pelo que todos o acompanhamos. Pablo começa a pintar a paisagem natural que o rodeia, até fazer uma pausa para almoçar e se deliciar com uma sesta. Aqui dá-se o momento de viragem da narrativa, com uma sucessão de acontecimentos inesperados e alheios à personagem. Seis animais aparecem, sucessivamente, acrescentando à paisagem da tela algo que é para si importante. Cada um tem uma perspectiva única do mesmo espaço, de acordo com as suas necessidades e gostos, em suma, da sua identidade. A contribuição colectiva alarga a perspectiva limitada do olhar individual.
Recorrendo à técnica enumerativa, Kitamura apresenta cada um dos animais através da ilustração, no topo da página. Depois, segue-se a intervenção no quadro. Um a um, vão completando a tela com relva, bolotas, o céu mais azul, o bosque ao fundo, as flores na relva e finalmente… um mistério.
A pintura esteve sempre visível até aqui, quando o Sr. Lobo se apodera do pincel para lhe acrescentar o último retoque. Este é o segundo momento em que o autor prende a atenção do seu público: o jogo de desvendar e esconder é agora o responsável pelo mistério. A ilustração deixa de reforçar a ideia do texto, deixa de o complementar, e passa a ocultar uma preciosa informação: o que pintou o Sr. Lobo? O momento artístico dos animais acaba quando todos contemplam o resultado do seu trabalho com entusiasmo e surpresa, pelo elemento que o último deles tinha acrescentado.
O enfoque narrativo retorna a Pablo, que acorda da sesta. Afirma ter tido um sonho estranho e saber agora o que pintar. Voltamos a ver a tela, igual à que Pablo interrompe para almoçar e a ovelha encontra durante a sua sesta. Onde estão todas as alterações que tiveram lugar enquanto o pintor dormia? Será que tudo não passou de um sonho?
No final, apresenta-se finalmente o quadro terminado, na parede da exposição. Revela-se o mistério: lá está a paisagem, com os elementos que os animais lhe haviam acrescentado (em sonhos ou na realidade?) e com o Sr. Lobo a pintar o retrato dos restantes companheiros nessa mesma paisagem. Temos então um quadro dentro de outro quadro, como uma narrativa dentro de outra. O quadro é a história do sonho de Pablo, é a imagem que sintetiza a história que o livro nos conta, que a conclui e revela.
O topos do sonho, tantas vezes utilizado na história da literatura infantil como ponte entre a fantasia e a realidade, é aqui dissolvido, transformando-se no centro problematizador da narrativa. É na dualidade que reside a resposta ao problema inicial do bloqueio artístico: a originalidade e qualidade da pintura decorre de Pablo ter escolhido contar como era aquela paisagem para os que lá vivem e interagem, em vez de simplesmente a ter visto com os seus olhos.
Para além da mensagem, a estratégia narrativa (em que a cumplicidade entre texto e ilustração é tão subtil como eficaz) desafia as crianças a ultrapassarem as fórmulas reconhecíveis, partindo desse reconhecimento. Sem se deixar tentar pela experiência da ilegibilidade, Satoshi Kitamura propõe uma leitura que não choca os leitores menos seguros, despertando-os contudo para a intersecção na construção da lógica narrativa. Prova assim que o recurso à linearidade da enumeração pode integrar uma estrutura mais complexa, contribuindo para fixar a atenção dos leitores, sem abdicar do risco.
in  O Bicho dos Livros

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