sexta-feira, 21 de março de 2014

Receita para fazer o azul de Nuno Júdice

Se quiseres fazer azul,
pega num pedaço de céu e mete-o numa panela grande,
que possas levar ao lume do horizonte;
depois mexe o azul com um resto de vermelho
da madrugada, até que ele se desfaça;
despeja tudo num bacio bem limpo,
para que nada reste das impurezas da tarde.
Por fim, peneira um resto de ouro da areia
do meio-dia, até que a cor pegue ao fundo de metal.
Se quiseres, para que as cores se não desprendam
com o tempo, deita no líquido um caroço de pêssego queimado.
Vê-lo-ás desfazer-se, sem deixar sinais de que alguma vez
ali o puseste; e nem o negro da cinza deixará um resto de ocre
na superfície dourada. Podes, então, levantar a cor
até à altura dos olhos, e compará-la com o azul autêntico.
Ambas as cores te parecerão semelhantes, sem que
possas distinguir entre uma e outra.
Assim o fiz - eu, Abraão bem Judá Ibn Haim,
iluminador de Loulé - e deixei a receita a quem quiser,
algum dia, imitar o céu.



NUNO JÚDICE
Meditação sobre Ruínas
(1994)

quinta-feira, 13 de março de 2014

Semana da Leitura – 800 anos da Língua Portuguesa


Os 800 anos da Língua Portuguesa são o mote para a Semana da Leitura deste ano letivo. Aqui ficam alguns textos de autores lusófonos que celebram a língua portuguesa e cuja leitura sugerimos.



      Uma língua é o lugar donde se vê o Mundo
       e em que se traçam os limites do nosso pensar e sentir.

      Da minha língua vê-se o mar.
      Da minha língua ouve-se o seu rumor, como das de outros se ouvira o da floresta ou o silêncio do   deserto.
      Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação.
                                                                                                      Vergílio Ferreira (1916-1996)





Uma língua e diferentes culturas
por Manuel Alegre

     Comunicação apresentada no Programa Cultural da Expolíngua, em Madrid, em Março de 2003
                                       

      Antes de ser Estado, Portugal foi trova, cantar de amigo, flor de verde pinho, menina e moça de Bernardim. E também o sol é grande e o comigo me desavim, de Sá de Miranda. E sobretudo Camões, a Lírica e os Lusíadas, esse poema fundador, que é um verdadeiro acto de soberania espiritual. Como costuma lembrar Mário Cesainy, Camões escreveu o português tal como hoje o falamos. Por isso ele não é só, até certo ponto, o fundador de uma identidade cultural, é também o fundador da língua portuguesa que hoje escrevemos e falamos. (…)
       Portugal foi língua e foi poema. Essa é a verdade cultural ou, se preferirem, a verdade poética e mágica da criação de Portugal. As nações todas são mistérios, dizia Pessoa. Este é talvez o mistério de Portugal: a língua.
           (…)
            Eu creio que pela mediação da poesia os poetas fundaram os povos. E os povos fundaram a língua. E a língua fundou as nações. Língua de viagem e mestiçagem, como gosta de dizer o meu amigo Manuel Rui.
            Rio de muitos rios. E talvez pátria de várias pátrias. Sem esquecer que há o português da opressão e o português da libertação. O Português de múltiplas tiranias e o português das várias resistências. A língua é a mesma. Mas não é a mesma. Mas não é a mesma. É una. Mas é diversa. Tanto mais ela quanto mais diferente. Tanto mais pura quanto mais impura. Tanto mais rica quanto mais mestiça.



                     E a expedição partiu.
                     Partiu, e o coração da mãe parou.
                     E parado de angústia assim viveu
                     Enquanto a caravela não voltou.
                                  Miguel Torga (1907-1995)


Poema da língua portuguesa

Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela…

Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de Oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma.

Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O génio sem ventura e o amor sem brilho!
                           
   Olavo Bilac, Poeta brasileiro (1865-1918)

De Palavras Novas


1
De palavras novas também se faz país
neste país tão feito de poemas
que a produção e tudo a semear
terá de ser cantado noutro ciclo.
2
É fértil, este tempo de palavras
em busca do poema
que foge na curva das palavras
usadamente soltas e antigas
distantes das verdades dos rios
do quente necessário das brasas
do latejar silencioso das sementes
dentro da terra quando chove.
3
Proponho um verso novo
para as laranjas (por exemplo) matinais
e os namorados
com que havemos de encher todos os dias os mercados.
4
Proponho um verso novo
para a guelra do peixe sem contar
para a abundância da carne
e a liberdade das aves desenhada
no amor das escolas dos campos e das fábricas.
5
Proponho e verso novo
para o leite obrigatório em cada dia
e a medalha olímpica
que o riso das crianças já promete.
6
Proponho um verso novo
para o milho a mandioca suculenta
o amadurecido cacho de dendém
alegre na fartura dos dedos e das bocas.
7
Produzir na palavra
É semear e colher
É cumprir na escrita
A produção.
8
Produzir na palavra
É cantar no poema
Todas as raízes
Deste chão.

Manuel Rui, poeta e escritor angolano
.



                 Perguntas à língua portuguesa      

       Venho brincar aqui no Português, a língua, não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e poleiro pouco me acarreta.
       A língua que eu quero é essa que perde função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o mesmo que a asa sente quando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem, colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é dimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente se desobedecem. Meu anjo- da- guarda, felizmente, nunca me guardou.
       Uns nos acalentam: que nós estamos a sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Na falta domínio, carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé? Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós, aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo são a ciência de sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.
       No enquanto, defendemos o direito de não saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica fugidia a gramáticas.
        Esta obra de reinvenção não é operação exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que somos capazes de produzir um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão o ovo das galinhas de ouro?
                                                                        Mia Couto, poeta e escritor moçambicano





         As Palavras, Eugénio de Andrade (1923-2005)

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
As palavras cristalinas nem sempre são transparentes, mas entram no entendimento de todos. Emanam energia de mil cores.
As palavras-punhal ferem de mansinho ou esfaqueiam-nos barbaramente. Produzem cortes que logo se curam ou que nunca mais voltarão a cicatrizar.
As palavras incendiárias invadem-nos abruptamente, deixando-nos sem defesa. Por vezes, criam desejos e fantasias que se poderão sublimar ou talvez não.
As palavras orvalho aparecem pela manhã, leves e refrescantes, líquidas e macias. Alimentam-nos as flores da alma.
As palavras secretas habitam em nós em locais inacessíveis, repletas de teias de aranhas. Às vezes, moram em baús e ficam como palavras-memória.
As palavras inseguras saem tremidas porque sem certezas. Por vezes, mais verdadeiras que as seguras, mas ninguém as ouve.
As palavras-barcos fazem-nos navegar em livros-oceanos. As palavras-beijos acarinham-nos e confortam-nos.
Quando são luz, preenchem-nos de conhecimento e quando são noite, são pensamentos estrelados, salpicados na escuridão.
Verdes paraísos de palavras são oásis em desertos afetivos e há as palavras cruéis que desfazem mesmo as conchas mais puras.
As palavras de amor e amizade vão permanecer caladas por uns tempos porque nem sempre o pensado e sentido deve ser verbalizado. Fiquem bem.



A palavra

Falo da natureza.
E nas minhas palavras vou sentindo
A dureza das pedras,
 A frescura das fontes,
O perfume das flores.
Digo, e tenho na voz
 O mistério das coisas nomeadas
Tanto as olhei,
Interroguei,
Analisei
E referi, outrora,
Que nos próprios Sinais com que as marquei
As reconheço agora.


Miguel Torga (1907-1995)




 

Em que língua
Em que língua escrever
As declarações de amor
Em que língua cantar
As histórias que ouvi contar


Em que língua escrever
Contando os feitos das mulheres
E dos homens do meu chão?

Como falar dos velhos
Das passadas e cantigas?
Falarei em crioulo?
Falarei em crioulo! Mas que sinais deixar
Aos netos deste século?

Ou terei de falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa
Mas assim terei palavras para deixar
Aos herdeiros do nosso século




Ou terei de falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa.
Mas assim terei palavras para deixar
Aos herdeiros do nosso século
Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará a sua viagem

Deixarei o recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo
E aos séculos
No caminho da vida
Os netos e herdeiros
Saberão quem fomos



Odete Semedo, escritora caboverdiana