Língua Portuguesa: a hora da esperança
Maria Alzira Seixo
Os deputados não serão indiferentes à ideia de seus
filhos e netos, e todos os portugueses, se tornarem deficientes
linguísticos ‘ad aeternum’
Neste fulgor baço da terra/ que é Portugal a
entristecer/ – é a Hora!
Fernando Pessoa
Fernando Pessoa
Elsa Triolet, esposa do poeta Aragon, escritora
também, deu um lindo e especioso título a um romance seu, em português Rosas
a Prestações. Seguindo a sua lógica de maravilhoso a conta-gotas, pode
também falar-se de esperança neste nosso tempo de desespero. Não da esperança
económica, que talvez se fique por ganhos empresariais e subidas da palavra
Portugal em gráficos de Mercados. Nem do viver melhor, para a maioria, que se
limitará a ler a notícia disso nos jornais.
Mas, se para alguma coisa serviu o 25 de Abril (neste
40.º aniversário próximo, frisarei: “25 de Abril sempre, fascismo nunca mais!”),
foi para instaurar a democracia entre nós e, com ela, a possibilidade de pensar
livremente, criticar, reconsiderar: para amparar e reconstruir o país. Agora,
em ruína… a precisar de tanto amparo. A precisar de clarividência e isenção.
Mas pensar e criticar faz-se com palavras, com
linguagem, com uma formação profissional prática e teórica, que se enriquece
com a cultura de cada um, feita de aprendizagem do quotidiano, da vivência
própria do indivíduo, tendo por base a escola, educação, exercício profissional,
experiência de cultura e arte, exercício da cidadania. As palavras são
manancial de riqueza: juntam a criatividade de “crescer” em diversos sentidos,
a partir das suas raízes fortes, em lógica de desenvolvimento que é tanto delas
mesmas como dos que as usam, quando respeitam o seu étimo. E reúnem-se na
família vocabular que é a Língua: o Português, cujas raízes estão no Latim e no
Grego, beneficiando de outras línguas no seu convívio. São como um chão em que
nos movimentamos, tanto quanto um firmamento de sonho, que em nós suscita
desejos e projectos, leva a sucessos e invenções. Quase sem darmos por elas,
como nos entenderíamos sem palavras fortes, não dúbias e bem definidas?
Ora já sabemos como o chamado Acordo Ortográfico as
veio maltratar, como as cortou das raízes da sua proveniência, como lhes
decepou ligações de vizinhança com línguas europeias. E antevemos vários cortes
de raciocínio (o raciocínio que leva à acção concertada!) a que tal conduz.
Reencaminhamo-nos, assim, para o “orgulhosamente sós” de Salazar e, mais do que
sós, ficamos decepados. Com a desculpa que a ortografia não é a língua (como se
ela não fosse parte integrante da língua, como a pele que cobre o corpo!), o
Acordo Ortográfico desfigura a linguagem: desmembra famílias de palavras,
estraçalha vocábulos (que parecem outros, com os quais os falantes os
confundem), isola termos que ficam lexicalmente à deriva, num oceano de
incongruências, arbitrariedades, confusões, deslocalização do sentido original,
que já não é possível perceber para se atinar de imediato com o sentido. Um
desatino!
Ficámos aleijados a escrever em português. Por
determinação da lei que impôs o Acordo Ortográfico como medida política de
aproximação com os países de língua oficial portuguesa. Os quais, afinal, enjeitam
tal medida, pois não o adoptaram! E aleijados também porque ninguém entre nós
sabe escrever segundo o Acordo, tão impossível de fixar ele é, ilógico nas suas
regras, infinidade de excepções e hipóteses de escrita múltipla. Não se
consegue fixá-las, é preciso decorar o que está correcto e o que não está! Não
há hoje quem saiba escrever em Portugal segundo o Acordo: escrevem os
correctores automáticos (ditadores mecânicos da linguagem que “faz” cultura:
como Deus a fazer um “pato” com o Diabo, num livro de Saramago; como a locutora
da TV que lança um “réto” (“repto” quis ela dizer, e não “recto”) ou como o
aluno que, lendo sobre “a Imaculada Conceção”, passa a escrito como “Imaculada
Concessão” – exemplos sem fim, que parecem anedota, se é que tudo isto o não é…
Por uma vez, as piadas deixam de fazer rir em Portugal, pois é o ser humano,
física e mentalmente, que o Acordo Ortográfico agride, já que a saúde do
indivíduo reside também na sua fala e poder de escrita, e ambas se
interpenetram.
Não vale a pena exibir mais agravos do Acordo
Ortográfico: as críticas que lhe têm sido feitas chegam e sobejam para
entendermos o seu alcance de danificação, em expressão e raciocínio, a curto
prazo (e já actual!), no falante luso. E as implicações a vir na descida do
nosso nível cultural, profissional e económico, no futuro. É uma amputação!
Quem aprovou a lei não o supunha, talvez. Embora tenha havido claros pareceres
e advertências, na altura devida – e os responsáveis fizeram, no sentido mais
próprio, ouvidos de mercador.
Mas ainda é tempo! A Assembleia da República que
aprovou esse instrumento de atraso mental não é hoje a mesma, e os que nela
permanecem, do grupo anterior, tiveram entretanto ensejo de reflectir, de
compreender. Tenhamos esperança! Os portugueses que formam esta AR podem
mostrar-se cidadãos responsáveis, que não querem depender, durante o resto da
vida, de conversores automáticos colocados em computadores, os quais ainda por
cima erram na aplicação do próprio Acordo, e o resultado é que não se fica a
escrever nem em Português nem na ortografia imposta…, escreve-se em língua que
não existe, não é a da lei, nem a usual! Os deputados não serão indiferentes à
ideia de seus filhos e netos, e todos os portugueses, se tornarem deficientes
linguísticos ad aeternum, com os custos que isso acarretará, em
atraso e marginalidade decorrente, para Portugal. “Medida política”, isto?!
Tal medida, impensadamente aprovada em 2008, que
desfigura a fisionomia do Português, vai ser reexaminada na Assembleia da
República no próximo dia 28, graças a mais uma Petição de cidadãos que
pretendem desvincular-se do Acordo Ortográfico, recebida por este órgão de
soberania. Esse pode ser um dia de efectiva recuperação para o nosso país, e o
28 de Fevereiro ser data marcante da democracia, como efectiva participação do
povo na res publica! A esperança é a última a morrer? Talvez, mas…
quem espera sempre alcança. Em Rosas a Prestações, as heroínas,
jovens raparigas belas, ambiciosas e ignorantes, deitaram tudo a perder. Porque
a sua esperança se apoiava em gestos de exibição social, aparência física de
vazio interior e relações de interesse… e tudo isso, se não tem linguagem
segura a apoiar o indivíduo e a torná-lo gente, estilhaça-se. Esse é um romance
que foca a falência humana pela incapacidade da linguagem na comunicação. Mas a
vida não é um romance, e, em democracia, o decisor é o povo, pelos seus
representantes. Haja, pois, confiança!
Maria Alzira Seixo
Centro de Estudos Comparatistas – FLUL
Centro de Estudos Comparatistas – FLUL
[Transcrição
integral de artigo de opinião publicado no jornal "Público" de 25.02.14
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