Os 800 anos da Língua Portuguesa são o mote para a Semana da
Leitura deste ano letivo. Aqui ficam alguns textos de autores lusófonos que
celebram a língua portuguesa e cuja leitura sugerimos.
Uma língua é o lugar donde se vê o
Mundo
e em que se traçam os limites do
nosso pensar e sentir.
Da minha língua vê-se o mar.
Da minha língua ouve-se o seu
rumor, como das de outros se ouvira o da floresta ou o silêncio do deserto.
Por isso a voz do mar foi a da nossa inquietação.
Vergílio Ferreira (1916-1996)
Uma língua e diferentes culturas
por Manuel Alegre
Comunicação apresentada no Programa Cultural da Expolíngua, em Madrid,
em Março de 2003
Antes de ser Estado, Portugal foi trova, cantar de amigo, flor de verde
pinho, menina e moça de Bernardim. E também o
sol é grande e o comigo me desavim, de Sá de Miranda. E sobretudo Camões, a
Lírica e os Lusíadas, esse poema fundador, que é um verdadeiro acto de
soberania espiritual. Como costuma lembrar Mário Cesainy, Camões escreveu o
português tal como hoje o falamos. Por isso ele não é só, até certo ponto, o
fundador de uma identidade cultural, é também o fundador da língua portuguesa
que hoje escrevemos e falamos. (…)
Portugal foi língua e foi poema. Essa é a verdade cultural ou, se
preferirem, a verdade poética e mágica da criação de Portugal. As nações todas
são mistérios, dizia Pessoa. Este é talvez o mistério de Portugal: a língua.
(…)
Eu
creio que pela mediação da poesia os poetas fundaram os povos. E os povos
fundaram a língua. E a língua fundou as nações. Língua de viagem e mestiçagem,
como gosta de dizer o meu amigo Manuel Rui.
Rio
de muitos rios. E talvez pátria de várias pátrias. Sem esquecer que há o
português da opressão e o português da libertação. O Português de múltiplas
tiranias e o português das várias resistências. A língua é a mesma. Mas não é a
mesma. Mas não é a mesma. É una. Mas é diversa. Tanto mais ela quanto mais
diferente. Tanto mais pura quanto mais impura. Tanto mais rica quanto mais
mestiça.
E a expedição partiu.
Partiu, e o coração da mãe parou.
E parado de angústia assim viveu
Enquanto a caravela não voltou.
Miguel Torga (1907-1995)
Poema da língua portuguesa
Última flor do Lácio, inculta e
bela,
És, a um tempo, esplendor e
sepultura:
Ouro nativo, que na ganga
impura
A bruta mina entre os cascalhos
vela…
Amo-te assim, desconhecida e
obscura,
Tuba de alto clangor, lira
singela,
Que tens o trom e o silvo da
procela
E o arrolo da saudade e da
ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu
aroma
De virgens selvas e de Oceano
largo!
Amo-te, ó rude e doloroso
idioma.
Em que da voz materna ouvi:
“meu filho!”
E em que Camões chorou, no
exílio amargo,
O génio sem ventura e o amor
sem brilho!
Olavo Bilac, Poeta brasileiro (1865-1918)
De Palavras Novas
1
De palavras novas também se
faz país
neste país tão feito de
poemas
que a produção e tudo a
semear
terá de ser cantado noutro
ciclo.
2
É fértil, este tempo de
palavras
em busca do poema
que foge na curva das
palavras
usadamente soltas e antigas
distantes das verdades dos
rios
do quente necessário das
brasas
do latejar silencioso das
sementes
dentro da terra quando chove.
3
Proponho um verso novo
para as
laranjas (por exemplo) matinais
e os
namorados
com que
havemos de encher todos os dias os mercados.
4
Proponho um verso novo
para a guelra do peixe sem
contar
para a abundância da carne
e a liberdade das aves
desenhada
no amor das escolas dos
campos e das fábricas.
|
5
Proponho e verso novo
para o leite obrigatório em
cada dia
e a medalha olímpica
que o riso das crianças já
promete.
6
Proponho um verso novo
para o milho a mandioca
suculenta
o amadurecido cacho de dendém
alegre na fartura dos dedos e
das bocas.
7
Produzir na palavra
É semear e colher
É cumprir na escrita
A produção.
8
Produzir na palavra
É cantar no poema
Todas as raízes
Deste chão.
Manuel Rui, poeta e escritor angolano |
.
Perguntas
à língua portuguesa
Venho brincar aqui no Português, a
língua, não aquela que outros embandeiram. Mas a língua nossa, essa que dá
gosto a gente namorar e que nos faz a nós, moçambicanos, ficarmos mais
Moçambique. Que outros pretendam cavalgar o assunto para fins de cadeira e
poleiro pouco me acarreta.
A língua que eu quero é essa que perde
função e se torna carícia. O que me apronta é o simples gosto da palavra, o
mesmo que a asa sente quando o voo. Meu desejo é desalisar a linguagem,
colocando nela as quantas dimensões da Vida. E quantas são? Se a Vida tem é dimensões? Assim, embarco nesse gozo de ver como escrita e o mundo mutuamente
se desobedecem. Meu anjo- da- guarda, felizmente, nunca me guardou.
Uns nos acalentam: que nós estamos a
sustentar maiores territórios da lusofonia. Nós estamos simplesmente ocupados a
sermos. Outros nos acusam: nós estamos a desgastar a língua. Na falta domínio,
carecemos de técnica. Ora qual é a nossa elegância? Nenhuma, excepto a de irmos
ajeitando o pé a um novo chão. Ou estaremos convidando o chão ao molde do pé?
Questões que dariam para muita conferência, papelosas comunicações. Mas nós,
aqui na mais meridional esquina do Sul, estamos exercendo são a ciência de
sobreviver. Nós estamos deitando molho sobre pouca farinha a ver se o milagre
dos pães se repete na periferia do mundo, neste sulbúrbio.
No enquanto, defendemos o direito de não
saber, o gosto de saborear ignorâncias. Entretanto, vamos criando uma língua
apta para o futuro, veloz como a palmeira, que dança todas as brisas sem
deslocar seu chão. Língua artesanal, plástica fugidia a gramáticas.
Esta obra de reinvenção não é operação
exclusiva dos escritores e linguistas. Recriamos a língua na medida em que
somos capazes de produzir um pensamento nosso. O idioma, afinal, o que é senão
o ovo das galinhas de ouro?
Mia Couto, poeta e escritor moçambicano
As Palavras, Eugénio de Andrade
|
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas
vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas,
inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?
As palavras cristalinas nem sempre são transparentes,
mas entram no entendimento de todos. Emanam energia de mil cores.
As palavras-punhal ferem de mansinho ou esfaqueiam-nos barbaramente. Produzem cortes que logo se curam ou que nunca mais voltarão a cicatrizar.
As palavras incendiárias invadem-nos abruptamente, deixando-nos sem defesa. Por vezes, criam desejos e fantasias que se poderão sublimar ou talvez não.
As palavras orvalho aparecem pela manhã, leves e refrescantes, líquidas e macias. Alimentam-nos as flores da alma.
As palavras secretas habitam em nós em locais inacessíveis, repletas de teias de aranhas. Às vezes, moram em baús e ficam como palavras-memória.
As palavras inseguras saem tremidas porque sem certezas. Por vezes, mais verdadeiras que as seguras, mas ninguém as ouve.
As palavras-barcos fazem-nos navegar em livros-oceanos. As palavras-beijos acarinham-nos e confortam-nos.
Quando são luz, preenchem-nos de conhecimento e quando são noite, são pensamentos estrelados, salpicados na escuridão.
Verdes paraísos de palavras são oásis em desertos afetivos e há as palavras cruéis que desfazem mesmo as conchas mais puras.
As palavras-punhal ferem de mansinho ou esfaqueiam-nos barbaramente. Produzem cortes que logo se curam ou que nunca mais voltarão a cicatrizar.
As palavras incendiárias invadem-nos abruptamente, deixando-nos sem defesa. Por vezes, criam desejos e fantasias que se poderão sublimar ou talvez não.
As palavras orvalho aparecem pela manhã, leves e refrescantes, líquidas e macias. Alimentam-nos as flores da alma.
As palavras secretas habitam em nós em locais inacessíveis, repletas de teias de aranhas. Às vezes, moram em baús e ficam como palavras-memória.
As palavras inseguras saem tremidas porque sem certezas. Por vezes, mais verdadeiras que as seguras, mas ninguém as ouve.
As palavras-barcos fazem-nos navegar em livros-oceanos. As palavras-beijos acarinham-nos e confortam-nos.
Quando são luz, preenchem-nos de conhecimento e quando são noite, são pensamentos estrelados, salpicados na escuridão.
Verdes paraísos de palavras são oásis em desertos afetivos e há as palavras cruéis que desfazem mesmo as conchas mais puras.
As palavras de amor e amizade vão permanecer caladas por uns
tempos porque nem sempre o pensado e sentido deve ser verbalizado. Fiquem bem.
A palavra
Falo da natureza.
E nas minhas palavras vou sentindo
A dureza das pedras,
A frescura das fontes,
O perfume das flores.
Digo, e tenho na voz
O mistério das coisas nomeadas
Tanto as olhei,
Interroguei,
Analisei
E referi, outrora,
Que nos próprios Sinais com que as
marquei
As reconheço agora.
Miguel Torga
(1907-1995)
Em
que língua
|
|
Em
que língua escrever
As
declarações de amor
Em
que língua cantar
As
histórias que ouvi contar
Em
que língua escrever
Contando
os feitos das mulheres
E
dos homens do meu chão?
Como
falar dos velhos
Das
passadas e cantigas?
Falarei
em crioulo?
Falarei
em crioulo! Mas que sinais deixar
Aos
netos deste século?
Ou
terei de falar
Nesta
língua lusa
E
eu sem arte nem musa
Mas
assim terei palavras para deixar
Aos
herdeiros do nosso século
|
Ou terei de falar
Nesta língua lusa
E eu sem arte nem musa.
Mas assim terei palavras para deixar
Aos herdeiros do nosso século
Em crioulo gritarei
A minha mensagem
Que de boca em boca
Fará a sua viagem
Deixarei o recado
Num pergaminho
Nesta língua lusa
Que mal entendo
E aos séculos
No caminho da vida
Os netos e herdeiros
Saberão quem fomos
Odete Semedo, escritora caboverdiana |
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