quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Carta de Valter Hugo Mãe para a Festa Literária Internacional de Paraty

Aqui fica o texto que Val­ter Hugo Mãe pediu para ler no final da sua mesa na FLIP– Festa Literária Inter­na­cional de Paraty e que levou o público na Tenda dos Autores às lágrimas.

Quando eu tinha uns 8 anos, veio morar para a casa ao lado da dos meus pais um casal de brasileiros com duas fil­has moças. Ao chegar, o casal ofer­e­ceu uma ambulân­cia ao quar­tel de bombeiros da nossa vila e toda a vila se emo­cio­nou. Foram os primeiros brasileiros que eu vi fora da tv, fora das nov­e­las. Eu e os meus ami­gos fomos ao quar­tel dos bombeiros apre­ciar a ambulân­cia nova, bem pin­tada, que se mostrava a todos como prova bonita da bon­dade de alguém. O meu pai tinha um carro pequeno, velho, difí­cil de levar a família inteira den­tro. A ambulân­cia era enorme, um luxo, como se fosse para trans­portar doentes felizes. Eu e os meus ami­gos ficamos estu­pe­fac­ta­mente felizes.
Depois, algu­mas mul­heres e alguns homens mais del­i­ca­dos reuniam-se diante da sen­hora e das moças brasileiras e faziam per­gun­tas sobre as nov­e­las. Naquele tempo, pas­savam com muito atraso em relação ao Brasil, e todos que­riam avi­da­mente saber quem casava com quem na ‘Gabriela’.
A sen­hora e as suas duas fil­has, porque sabiam o que ia acon­te­cer nas nov­e­las, eram aos olhos de todos como adi­v­in­has, gente que via coisas do futuro, gente que viveu o futuro e que se jun­tou a nós para reviver o pas­sado. Por causa disto, eram mág­i­cas e as pes­soas que­riam a opinião delas para cada decisão.
A minha mãe pediu à nova viz­inha a receita para fazer pizza, porque ainda não havia piz­zarias e só víamos nas revis­tas como deviam ser boni­tos e saborosos aque­les cír­cu­los de pão e queijo col­ori­dos pou­sa­dos nas mesas. Passá­mos a comer uma pizza de atum com muitas azeitonas pre­tas. Ainda hoje peço nos restau­rantes pizza de atum com a esper­ança de que seja exac­ta­mente igual à da minha infân­cia, mas nunca é.
As moças brasileiras eram mais vel­has do que eu e ficaram ami­gas das min­has irmãs. As min­has irmãs saíam com elas à rua inchadas de orgulho, porque as pes­soas todas, sem­pre comovi­das com a ambulân­cia, faziam vénia e sor­riam. Havia gente que dizia que as moças brasileiras eram as mais belas de todas. Elas eram, na ver­dade, sor­ri­dentes, e eu senti que tam­bém seriam muito felizes na nossa pequena vila.
Um dia a minha irmã mais velha fez anos e foi festejá-los com uma festa na garagem das brasileiras. Na noite desse dia, ali pelas oito horas, uma outra menina, filha de um viz­inho por­tuguês, mostrou-me tudo. Não foi a primeira vez, mas eu que­ria sem­pre ver, emb­ora ela não quisesse sem­pre mostrar. Um amigo meu surpreendeu-nos e quis ver tam­bém, mas a menina respon­deu que não. Ela disse que  mostrava ape­nas a mim porque eu era amigo das brasileiras. Entendi que as brasileiras eram como um toque de midas que me trans­for­mava num menino de ouro.
Aos dezoito anos, aquele que é o meu amigo mais irmão chegou do Brasil e ingres­sou na minha escola. Eu instin­ti­va­mente corri atrás dele. Que­ria ser amigo dele como se fosse vital para mim. Ele mostrou-me Titãs e Legião Urbana. Eu achava que o Renato Russo ia sal­var a minha vida com aquela canção do ‘Tempo per­dido’. Quando o Renato Russo mor­reu, chorei muito e pas­sei só a chorar quando ouço o ‘Tempo per­dido’. Eu não sei se a arte nos deve sal­var, mas tenho a certeza de que pode con­duzir ao mel­hor que há em nós, para que não nos des­perdice­mos na vida.
O Alexan­dre, esse meu amigo brasileiro, mudou tudo em mim para mel­hor. Ado­rava via­jar de com­boio com ele quando entalá­va­mos as meias mal cheirosas nas janelas para que are­jassem durante a mar­cha. Nesse tempo, o Alexan­dre ensinou-me a perder aquela ver­gonha que só atra­palha. Porque os por­tugue­ses sem­pre foram meio envergonhados.
Hoje, temos quase quarenta anos, ele casou com uma por­tuguesa e tem fil­hos. Eu, não. Fiquei para tio a escr­ever romances e os romances tornaram-se fun­da­men­tais na minha vida, como a máquina de fazer espan­hóis. Son­hei sem­pre vir ao Brasil e vim várias vezes, fal­tava vir como escritor, pub­li­cado e rece­bido, pois aqui estou, a FLIP fez isso, não esque­cerei nunca, sinto que fazem de mim um homem de ouro, agradeço a todos muito por isso.”
val­ter hugo mãe, Paraty, Julho de 2011
(via blogue da Cosac Naify)

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