sábado, 26 de janeiro de 2013

O Diário de Anne Frank e a crónica A Montra de José Gomes Ferreira






             SEXTA-FEIRA, 9 DE OUTUBRO DE 1942

             Querida Kitty

Hoje tenho apenas novidades tristes e deprimentes para te contar. Os nossos muitos amigos e conhecidos Judeus estão a ser levados em massa. A Gestapo está a tratá-los muito duramente e a transportá-los em carruagens de gado para WesterborK, o grande campo em Drenthe para onde estão a mandar todos os Judeus, Miep falou-nos de uma pessoa que conseguiu fugir de lá. Deve ser terrível, WesterborK. Não dão quase nada para comer às pessoas muito menos para beber, pois a água está indispensável apenas uma hora por dia, e só há uma sanita e uma bacia para vários milhares de pessoas. Os homens e as mulheres dormem nos mesmos quartos, e muitas vezes rapam as cabeças às mulheres e às crianças. A fuga é quase impossível; muitas pessoas têm aspeto de judias e são identificadas pelas cabeças rapadas.

                Se as coisas estão tão más na Holanda, como será nesses locais distantes e incivilizados para onde os alemães os estão a mandar? Partimos do princípio de que a maioria está a ser assassinada. A rádio inglesa diz que estão a ser gaseados. Talvez seja a forma mais rápida de morrer.

                Sinto-me terrivelmente. Os relatos de Miep destes horrores são tão dilacerantes, e Miep também está muito perturbada. No outro dia, por exemplo, a Gestapo depositou uma mulher judia idosa e aleijada à porta de Miep, enquanto foram à procura de um carro. A velhota estava aterrorizada, com medo dos holofotes e das armas que disparavam contra os aviões ingleses. Contudo Miep não se atreveu a deixá-la entrar. Ninguém se atreveria. Os Alemães são bastante generosos quando se trata de distribuir castigos.

                Bep também está muito abatida. O namorado vai ser enviado para a Alemanha. De cada vez que passam os aviões, ela teme que estes larguem toda a sua carga de bombas em cima da cabeça de Bertus. Piadas como “Oh, não te preocupes, não podem cair todas em cima dele” ou “Uma bomba é mais do que suficiente”, não me parecem nada apropriadas nesta situação. Bertus não é o único que é obrigado a ir trabalhar para a Alemanha. Há comboios quando este pára em estações pequenas, mas são poucos os que conseguem escapar de serem botados e encontrar um lugar para se esconderem.

                Mas não terminam aqui as minhas lamentações. Já alguma vez ouviste o termo “reféns”? Esse é o último castigo para os sabotadores. É a coisa mais terrível que podes imaginar. Cidadãos importantes – pessoas inocentes – são feitos prisioneiros e ficam a aguardar a sua execução. Se a Gestapo não conseguir encontrar o sabotador, simplesmente pegam em cinco reféns e alinham-nos contra a parede. Lemos os anúncios das suas mortes nos jornais, onde se referem a eles como “acidentes fatais”.

                Belos espécimes da humanidade, estes alemães, e pensar que também sou um deles! Não, não é verdade, Hitler tirou-nos a nacionalidade há muito tempo. E além disso, não há maiores inimigos à face da terra do que os alemães e os judeus.

                                                                                                                                    Tua, Anne

                                                                                                                              In  Diário de Anne Frank       

Leia aqui o Prefácio deste diário, escrito por aquela que foi a  sua tradutora, Ilse Losa.

Excerto da crónica A montra de José Gomes Ferreira
 Hoje, no oitavo dia do mês de Maio de mil novecentos e quarenta e cinco, acabou na Europa a segunda grande guerra mundial. « Até que enfim!» - zumbiu a meu lado a voz melíflua dum cavalheiro dos olhos acendidos de entusiasmo, de conjuntivite e lugar-comum.
  « Até que enfim!», concordei eu, confuso de alegria, saltando do elétrico para me embeber na multidão ruidosa com bandeirinhas nas mãos, nas tranças das garotas, nos gritos dos cortejos – Vitória! Vitória! – e nos paus de vassoura sem bandeiras. Desceu finalmente o pano sobre esse pesadelo com bichos de aço, pilhas de mortos e cidades a arder, onde só faltava também cair a lua minada de explosivos para completar o peso da metralha.
     Desvaneceram-se as noites suadas de angústia, com as mãos fincadas nos aparelhos de rádio, quando o desespero dos momentos cruciantes acordava nos homens o dom de perceber todos os idiomas do planeta. Até búlgaro – como me garantiu certa vez um velho amigo, já idoso mas ainda com asas tão jovens na imaginação. Que entendeu integralmente as primeiras notícias do desembarque dos americanos na Europa nessa língua que, afinal, ninguém sabia se era búlgaro
    Nunca mais as boas discussões às mesas dos cafés com desenhos estratégicos esboçados à lufa - lufa nos mármores (uma coluna motorizada por aqui… outra pela margem do rio… além, uma testa de ponte…), nem os mapas recortados dos jornais e extraídos das carteiras como ases de trunfo, para confusão dos palermas sem mapas, mas ali eternamente fixes, naquela esquina, desde o tempo de Tolentino.
  Sumiram-se as teimas, as apostas, as conjeturas, as animadversões, os doestos, o «disse - me agora um amigo que voltou há pouco de Londres» e os boatos a pularem de boca em boca como gafanhotos verdes e infixáveis
   E, principalmente, já lá vão todos esses espantos adstritos à guerra que, para defesa do Arcanjo do Sono, ora tornávamos abstratos os patíbulos, os ventres abertos das crianças, os bairros residenciais em chamas as bombas de não sei quantas toneladas…-, ora lhes soprávamos jeitos de quimera para podermos suportar melhor, graças a uma pitada de poesia, as bombas voadoras e os foguetes com asas a perseguirem os comboios, rabiosos e incansáveis, como se estivessem carregados de explosivos inteligentes.
    Por fortuna, todo esse espetáculo macabro desfizera-se em fumo de passado e eu ia radiante, oh! Contente como um rato. Tanto que me assaltaram ganas de comprar também uma bandeira e imitar a satisfação lúgubre daquele homenzinho com quem esbarrei agora mesmo no Rossio, ajaezado de cores e de fitas na lapela, a manifestar, solitário, o prazer imensamente melancólico da sua independência.
- Vitória! Vitória…
              (…)
                                                                                                   in O Mundo dos Outros de José Gomes Ferreira
Leia aqui a crónica na íntegra.                                                                                                  

 

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