Herdei o prazer da
leitura da minha mãe de Filipa Leal
Todos os meses, desde que me
lembro de existir, chegava o catálogo do Círculo de Leitores e a minha mãe
escolhia um livro para ela e deixava-me escolher um livro para mim. Sem
censura. Sem rede. Foram as primeiras escolhas livres da minha vida, antes
mesmo de saber escolher.
A minha mãe encomendava «O
Marinheiro de Gibraltar» da Duras e eu pedia «A História do Senhor Sommer», de
Patrick Suskind; e quando a minha mãe encomendava «Na Outra Margem entre as
Árvores», de Hemingway, eu pedia, da Biblioteca Hitchcock, «Dia Difícil no
Cadafalso». Íamos lado a lado, como sempre, descobrindo tudo. E o prazer
daquela escolha, daquela liberdade, tornava ainda maior o meu prazer da
leitura.
Chegou entretanto o dia, o mês, o
ano, em que tínhamos escolhido o mesmo livro: «As Minhas Aventuras na República
Portuguesa», do Miguel Esteves Cardoso. Ríamos da “Aventura dos Chumaços”;
comovíamo-nos com o prefácio que começava assim: “Começar é fácil. Acabar é
mais fácil ainda”.
A minha mãe deixou-nos há dias,
para sempre.
O senhor que lhe trazia o
catálogo do Círculo de Leitores voltou esta semana, e o meu irmão não soube o
que lhe dizer. O senhor, se não me engano, é o mesmo há 25 anos. Eu era mais ou
menos a mesma há 33, eu e os meus irmãos: filhos de uma mulher sublime que fez
tudo para que atravessássemos a vida em liberdade. E com prazer.